O NOME DELE ERA "SEU" XANDICO
Seu Xandico
22 de outubro de 2007. Lá está ele dormindo na nossa cama com a maior
intimidade, como um filhinho que de vez em quando adormece na cama dos pais.
E é assim que ele se sente mesmo, como um filhinho nosso. E tenho certeza de
que se eu pudesse ler os seus pensamentos, poderia mesmo confirmar que essa é
uma grande verdade para ele, que nesses vinte e dois anos de convivência
aprendeu a nos amar como nós o amamos também e a depender completamente de
nós. É um amigo sincero, que sente a nossa falta quando demoramos a voltar
pra casa e enquanto não chegamos ele não pára de andar de um lado pra outro,
cheio de ansiedade, principalmente em relação ao seu dono, a quem se apegou
como se realmente fosse o pai dele.
Agora a sua idade equivale, em idade
humana, a mais de noventa anos. Magrinho, fraco e com o pelinho ralo e
desbotado, com seus olhinhos vesgos, antes de um lindo azul brilhante e agora
embotados pelo tempo e pela catarata que o impede de enxergar bem, costuma
perambular a esmo pela casa com um andarzinho banzeiro, trambecando das
perninhas magras, com um olhar perdido como se não estivesse reconhecendo os
lugares onde sempre viveu. Às vezes põe-se a miar alto e grosso até mesmo
durante a noite, como se estivesse a procura de alguma coisa que ninguém pode
saber o que é, e talvez nem ele mesmo saiba o quê. Então ele vai até o seu
pratinho no chão, come um pouco, depois procura um dos seus lugares
preferidos e volta a adormecer. E sonha. Os movimentos repentinos de suas
frágeis patinhas denotam que sua mente está revivendo, quem sabe, momentos de
seu passado distante, quando elas realmente faziam jus a reconhecida
agilidade dos gatos, quando pulavam janelas e muros, subiam correndo as
escadarias do prédio e foram capazes de incontáveis peripécias e fugas
espetaculares, se escondendo em apartamentos vizinhos ou desaparecendo sobre
o teto da garagem do prédio numa noite de chuva.
Pertence a raça siamesa, e no vigor da sua juventude as cores marrons
claro e escuro da sua pelagem eram de fazer inveja a qualquer outro bichano
que aparecesse nos corredores do edifício Simon Bolívar, onde ele veio
residir no apartamento 304, precisamente no dia doze de outubro de 1986, com
dois meses de idade, oferecido como presente no Dia da Criança à nossa filha
Tatiana.
A sua história é bastante longa e recheada de episódios pitorescos
durante esses longos anos, que até dariam um livro. Tem de tudo, começando
pelo dia em que já bastante forte e bom de briga ele atracou-se com outro
bichano do condomínio e o seu “pai”, que naquele tempo ainda não era assim
considerado, e que também não ia nem um pouco com o focinho dele, tentando
apartar a briga levou tremendas mordidas no braço esquerdo e na mão. A raiva
foi tamanha que ele tentou, embora inutilmente, dar-lhe uma boa surra. Foi um
verdadeiro pandemônio na cozinha de manhã cedo, com gente chorando e tudo,
implorando pra que ele não castigasse o gato. Deu barraco mesmo. Mas o
bichinho era tão danado que ao ver as coisas ficarem pretas pro seu lado,
lançou mão dos recursos que a natureza lhe conferiu e, agindo rápido como um
gato que se preza se escondeu embaixo da geladeira, que empurrada pra lá e
empurrada pra cá pra puxa-lo debaixo pelo rabo, veio parar no meio da
cozinha, mas ninguém conseguiu tira-lo de lá. E graças a habilidade do resto
da família, o dono do gato foi acalmado e levado para sala, onde recebeu os
cuidados necessários. E pelo resto do dia pouco se viu mais o felino, que
ressabiado tratou de se esconder muito bem.
E agora, quem vai poder explicar o porque da transformação que se
seguiu? Não há quem saiba. Daí por diante, apesar dos pesares, os dois, o
dono e o gato, se tornaram amigos, ou melhor, até pareciam pai e filho. De
tal forma que quilos e mais quilos de sardinha fresca passaram a entulhar o
congelador da geladeira e logo depois, caixas e mais caixas de latinhas de
Wiskas de sabores variados ao gosto do freguês passaram a ser empilhadas nos
armários e soleiras das janelas da área de serviço, e o gato gordo e luzidio
até passou a ter ficha completa com endereço fixo, número de telefone e tudo
em clínica veterinária da zona sul do Rio de Janeiro. Tudo pago pelo dono. E
passou também a ser elogiado por sua valentia e macheza, apesar de seu
proprietário ter mandado castra-lo, por motivos de conveniência ou, quem sabe,
para evitar inconveniências. No entanto, desconfio que até hoje o pobre
animalzinho tem essa mágoa atravessada na goela, mas conformou-se: fazer o
quê? O que foi feito, feito foi.... Entretanto ainda andou circulando pelos
corredores do prédio um boato de que um siamêsinho bastardo que nasceu na
garagem e que a mãe abandonou, só poderia ser filho dele, já que por ali não
havia outro gato daquela raça a não ser o do apartamento 304, afirmava
categoricamente um porteiro que encontrou o recém nascido. Nesse caso, se o
porteiro tiver razão, o dito cujo gato era tão macho mesmo que ainda foi pai,
mesmo depois de castrado.
Não tinha medo de estranhos e nunca se escondeu embaixo de cama com
medo de foguetão. Tirava de letra a gritaria e os estouros dos fogos na rua
durante os jogos da Copa do Mundo, olhando para a janela como se estivesse
entendendo alguma coisa. Entendendo ou não do assunto, o fato é que sempre
assistiu na sala, no meio da galera animada, os jogos de cinco Copas, recorde
batido por muito poucos espécimes da família dos felídeos. Até nas noites de
31 de dezembro, enquanto à meia noite os outros gatos se enfiavam dentro dos
armários, apavorados com os estouros das bombas, ele permanecia tranquilo,
apenas olhando para a janela da rua, como sempre aconteceu durante as vinte e
duas noites de ano novo que viveu e até mesmo comemorou, saboreando
suculentos pedaços de peru ou chester que lhe eram oferecidos.
Agora ele não
viverá mais por muito tempo entre nós. E não seria justo que depois de tantos
anos enchendo de alegria a nossa casa, mesmo tendo sido responsável por
quebra de abajur, relógios e ventiladores, por ter derrubado árvore de natal
e se embrenhado entre as lâmpadas acesas, quase causado um curto circuito,
tendo ficado dependurado no secador de roupas quando tentava fugir, mesmo
tendo a audácia de saltar pela janela e caído em cima da cabeça do coronel,
nosso vizinho que estava dormindo no sofá da sala e acordou apavorado, por
tudo isso e muito mais, não seria justo ele não receber uma homenagem das
pessoas a quem ele tanto trouxe momentos de alegria.
Depois que ele partir,
com certeza a casa nunca mais será a mesma. Nela estará sempre faltando o
velho gatinho que quase só tinha o coro e os ossos, mas era tão danado que
sempre tentava subir nos móveis e às vezes escorregava, por falta de força
nas perninhas trôpegas. Serão muitas as lembranças e a saudade que ele vai
deixar em nossos corações, quando de sua passagem por este mundo. Por isso
esta crônica está sendo escrita agora, pois ele é muitíssimo sensível e
inteligente para entender a nossa linguagem. Nós sabemos que ele compreende o
que estamos dizendo. Não importa o que os outros pensem de nós, o que digam e
o que falem... Ele está ali na minha frente e sabe que estou escrevendo sobre
ele, e ele merece esta homenagem.
Dois meses depois...
Sua última noite de reveillon ele passou deitadinho na nossa cama,
como sempre estava vivendo. Sem mais nenhum entusiasmo, de vez em quando
levantava a cabecinha e olhava esmo para a janela da rua, de onde vinha o som
dos estouros dos fogos, que ele ouviu pela última vez. Em seguida, mergulhou
em seu profundo sono.
Era o quinto dia do ano de 2008 e ele quase não
conseguia mais se alimentar nem beber água. A fraqueza o dominava e o seu
estado nos causava muita tristeza. A veterinária fora realista diante do
quadro de seu paciente que, devido a idade muito avançada, por ele nada mais
poderia ser feito.
Decidimos então autorizar a médica a sacrificá-lo, já que
anestesiado ele deixaria a vida sem nenhum sofrimento. Com muito pesar
levei-o à clínica em meus braços, enroladinho numa toalha macia como se ele
fosse um bebê, a fim de que tudo terminasse logo. Mas ao vê-lo estirar um
bracinho para fora da toalha e passar a patinha no meu queixo, olhando-me com
aqueles olhinhos embotados e tristes, como se estivesse me pedindo para não
fazer isso... ah, Deus! Eu não tive coragem de entrega-lo ao sacrifício.
Trouxe-o de volta para a sua casa que ele tanto amava e onde sempre viveu,
para que dela ele partisse em paz sabe-se lá para onde na eternidade, ou
mesmo para lugar nenhum.
Ele sempre foi surpreendente, e não deixou de ser
diferente ao chegar em casa naquela tarde, pois para espanto de todos, comeu
fígado cru picadinho e bebeu água durante mais dois dias e dormiu bastante! A
partir daí a sua longa vida entrou em contagem regressiva, com as forças
diminuindo a cada hora como a luz de uma vela, até o fim, quando envolto em
sua toalhinha felpuda e colocado sobre o sofá da sala, às vinte horas e
quinze minutos do dia 08 de janeiro, confortado pelo carinho da família à sua
volta, enfim o seu forte coraçãozinho de vinte e dois anos parou. Sem fazer
nenhum gesto ele partiu para sempre, deixando entre nós um grande vazio e a
história de um siamêsinho tão querido, que por nós será sempre lembrado com
imensa saudade.
Júnia – 19 de janeiro/2008
********
PELUCINHO - ETERNA SAUDADE...
Lembro-me muito bem de quando o vi pela primeira vez, deslizando pelo
corredor de tábua corrida no apartamento onde morava com os “pais”, correndo
e escorregando na superfície lisa com aquelas perninhas grossas e curtas,
rabinho peludo e levantado que mais parecia um espanadorzinho de penas. Com
aqueles olhinhos matreiros de cor avermelhada, olhava-me de longe com uma
certa reserva - uma intrusa desconhecida que sem querer havia pisado
levemente em uma de suas lindas patinhas. Apesar de eu ter tentado lhe fazer
um carinho e lhe pedir desculpas, ele não me deu muita confiança e manteve-se
à distância olhando-me desconfiado, deixando-me com um tremendo sentimento de
culpa e de paixão.
Era muito lindo, o bichano mais lindo e fofo que eu já conheci. De cor
bege, pelo farto e macio, era grande, gracioso, sociável e divertido.
Costumava entrar no lugar reservado para um aparelho de ar condicionado que
ainda não fora instalado na sala de visitas, e como o apartamento ficava no
primeiro andar do prédio, não havia quem passasse pela calçada que não
parasse para admirar a graça, a beleza e o charme que ele esbanjava, sentado,
apreciando tranquilamente o movimento da rua, indiferente aos elogios que lhe
faziam, principalmente as crianças.
Eu não podia imaginar que um dia ele viesse para a nossa casa,
integrar-se à nossa vida e se enraizar tão profundamente em meu coração.
Cheguei a criar uma débil fantasia imaginando que ele me chamava de vovó. É
que eu sempre gostei de gatinhos e de conversar com eles, fingindo que eles
também conversavam comigo, e inventava uma falinha com sotaque especial, como
se fosse deles.
Seu nome era Jimmy, mas como ele mais parecia um daqueles bichinhos
macios de pelúcia que se compra nas lojas, passei a chama-lo de Pelúcio,
apesar dos protestos de seu antigo dono, que dizia haver lhe dado um nome
mais sofisticado e charmoso, próprio para um exemplar da raça persa.
Pelúcio tinha hábitos muito cativantes, que logo conquistaram a sua
nova família, como o de enfiar as patinhas entre os cabelos da gente,
encostar a cabecinha na nossa cabeça e ficar ronronando de felicidade. Pedia
comidinha ficando de pé, subindo nas pernas de quem estava na cozinha, ficava
todo arrepiadinho e dava umas voltinhas em círculo. Cismou de tomar para ele
a minha cadeira de leitura, reclinável, e quando me via caminhar em direção a
ela, rapidamente corria na frente, subia na cadeira, se sentava e ficava me
olhando com ar triunfante, bem certo de ser o real proprietário daquele
território..
No verão mandávamos tosar o seu pelo por causa do calor. Ele
ficava tão curtinho e engraçado que até parecia um cachorrinho, que eu
adorava, e lhe dava tantos beijinhos que ele muito atordoado e sufocado, até
me arranhava e me dava uns tapas! Tão lin dinho...
De repente adoeceu. Ficou estranho, com o semblante visivelmente
abatido, olhinhos pra baixo e com o pescocinho mole. Não conseguia ficar de
pé. Depois de ser examinado, radiografado e medicado, aparentemente voltou ao
normal, mas estava condenado. A sua coluna estava lesionada. Talvez em suas
estripolias de gatinho danado, tivesse caído de mau jeito ao pular de algum
móvel e machucado fortemente uma vértebra, que prendendo um nervo impedia a
circulação da medula, e não foi aconselhável opera-lo. Depois de alguns dias
o problema se repetiu, ele foi medicado novamente, mas na terceira crise não
resistiu.
Só quem também ama de verdade pode entender a dor que se acumula no
coração de quem vê o seu ente querido sofrendo e não pode fazer mais nada
para alivia-lo. Ver os seus olhinhos nos olhando com um ar de quem está lhe
perguntando - por que? – faz a gente sentir uma comoção tão grande que temos
a impressão de que o nosso coração está se partindo, e somente as lágrimas
expressam a dor que estamos sentindo, e que já se chama saudade.
Para consolo nos restam as fotos de momentos felizes que vivemos
juntos, seu pratinho de ração, sua cumbuquinha de água e tudo mais que ele
usava. E a minha cadeira, que será sempre dele.
VOVÓ – 16/AGOSTO/2009
******
LADY MARINA - A LEIDINHA
(COLOCAR UMA FOTO DELA)
Uma tarde enquanto eu caminhava pelo parque do Flamengo no Rio
de Janeiro, avistei dentro de uma garagem de barcos na marina da Gloria, uma
gatinha branca muito frágil, que entre outros animais maiores também
disputava uma porção de comida no chão. Só que na disputa pela comida, os
outros gatos, fortes e sabidos a empurravam e lhe batiam, e um bichano muito
grande atirou-se sobre ela. Travou-se uma briga terrível e a pobrezinha
apanhava muito. Assustada ela correu e se escondeu embaixo de um barco velho.
Muito penalizada eu voltei à minha casa, coloquei um pouco de ração num
vidro, peguei um travesseiro surrado, coloquei tudo num carrinho de feira e
voltei ao parque, mas não encontrei mais a gatinha. Intencionalmente coloquei
um pouco de ração no chão, na esperança de que ela aparecesse, e toda a
gataria se aproximou para comer. De repente, muito timidamente apareceu
também a gatinha branca, que mais uma vez não teve nenhuma chance. Então eu
coloquei um pouco de ração na minha mão, estirei o braço e comecei a chama-la
carinhosamente mostrando-lhe a comidinha. Era muito tímida e ao mesmo tempo
agressiva, como se automaticamente vivesse tentando se defender, mas se
aproximou, estirou o pescocinho e começou a devorar os grãozinhos que estavam
na minha mão. Era muito magrinha, quase só tinha pelo e ossos, estava faminta
e muito machucada. Tinha uma linda pelagem, com apenas uma manchinha cinza
nas costas. Percebi que ela tinha um olhinho verde e outro azul, e como era
graciosa!
Enquanto comia eu a segurei com firmeza, puxei-a para o lado de fora
da cerca de arame e a coloquei dentro do carrinho sobre o travesseiro macio,
aonde já havia um punhado de ração espalhado, para ela comer. Não pesava
quase nada, era leve como uma pena. Fechei fortemente a tampa do carrinho e
rapidamente fomos embora para a nossa casa.
A princípio, mesmo assustada ela continuou a se alimentar. Depois,
sentindo-se segura dentro do carrinho, deitou-se sobre a almofada, virou a
cabecinha para um lado e começou a cochilar. Estava muito cansada e ofegante,
mas mesmo assim, de vez em quando se erguia e olhava para um lado e para o
outro como se estivesse vendo aqueles lugares pela primeira vez. Certamente
fora levada por alguém e abandonada dentro daquele cercado cheio de gatos
estranhos, que também tiveram o mesmo destino, mas que a maltratavam muito.
Resolvi em meu coração que de agora em diante eu lhe daria um novo destino, e
ela teria proteção, abrigo seguro, alimentação, carinho, família, e mais: um
nome!
Anoitecia quando chegamos no novo lar de Lady Marina da Gloria,
Leidinha, como seria chamada, aonde ela foi bem recebida e aceita, apesar do
olhar meio desconfiado de Seu Xandico, o nosso gato siamês, que apesar da
covardia que lhe fizeram, mesmo capado mostrou que era um macho de boa cepa,
e não parava de rodear e dar cheirinhos na linda namorada, de quem sempre
teve muitas crises de ciúmes, embora nunca tenha podido assumir pra valer as
suas obrigações de marido.
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Não era uma vira-latas, mas um felino SDR, ou seja, sem definição de
raça, era uma mistura, falou o veterinário, e a causa do seu raquitismo era a
fome, o maltrato e o estresse em que ela vivia. Não era tão novinha como eu
pensava; já era adulta, mas era pequena e curtinha. Tinha varias
feridas pelo corpo, causadas pelas unhas e mordidas dos gatos que a atacavam,
tinha bactérias nas patinhas e orelhas, e entre outras mazelas um fungo no
nariz. E aquele seu olhinho tinha a cor azul porque era vazado e cego.
- Pobrezinha, falei morrendo de pena. Ela ainda tem jeito, doutor?
Perguntei.
- Sim, claro, ela só precisa de cuidados, boa alimentação e
tratamento. E muito amor! Ela nunca teve nada disso...
E a Leidinha ficou internada por três dias, se alimentando bem,
tomando soro e remédio. Quando fui busca-la fiquei surpresa: apesar da
magreza estava linda! Tinha tomado banho, seu pelo estava tão branquinho e
escovado que dava gosto se ver, e estava toda perfumada e esperta.
Parecia mais uma coelhinha.
Em mais ou menos cinco meses engordou tanto que a barriguinha quase
encostava no chão, porque as patinhas eram curtas. Tinha um andarzinho requebrado
e faceiro e gostava de pular e correr, por isso mesmo fez valer o carinhoso
apelido de coelha, e com todo aquele sex-appeal, logo tivemos que
providenciar a sua castração para evitar maiores problemas, pois estava
ficando muito assanhada.
Quis o destino que um outro gatinho viesse para a nossa casa, o Bill.
Esse era bem nascido, tinha dois meses e logo cresceu muito, para desespero
daquele que já se julgava marido da linda gatona branca. Só que pra nenhum
dos dois ela dava a mínima, não queria era nada, pois já estava de coração
fechado para o amor desde aquela operação que lhe fizeram na clínica. E lá eu
tive que levar o outro gato macho pra castrar também, só assim a gente teria
sossego em casa, ainda mais por causa dos ciúmes do siamês, que era bom de
briga, e nas suas crises passava o dia rosnando, ameaçando sair no
tapa.
Brancas nuvens por muito tempo, família tranqüila, mas lá vem o
destino outra vez com uma das suas. E chegou o Pelucinho, um bichano persa
lindão de cor bege, um verdadeiro gatão, pra mais uma vez atiçar os ciúmes do
siamês. Troca de olhares e cheirinhos furtivos aconteceram de montão com a
chegada do gatão, mas pra sorte do maridão, o belo concorrente, coitado, não
era de nada. Também era eunuco!
------------
Infelizmente ninguém escapa da crueldade do destino, pois tudo que
começa tem fim. Nós tínhamos uma família de quatro lindos felinos que
conviviam em santa paz, mas começamos a perceber que a coelhinha, a
essa altura já com treze anos, apesar de seu grande apetite, estava
emagrecendo. Vivia deitada embaixo de uma mesinha na cozinha e de vez
em quando botava a língua pra fora, tossia e ficava muito cansada, ofegante
mesmo. Já não brincava nem corria junto com os seus três amigos.
------------
Na clínica, o mesmo veterinário que cuidou dela antes, foi taxativo.
Mostrando-me a radiografia, falou:
- Não tenho boas notícias não. Infelizmente é câncer no pulmão, e em
estado bem avançado, mas com medicamentos e quimioterapia...
Realmente a notícia foi muito chocante, foi como se nós duas, eu e
minha filha, tivéssemos levado uma pancada na cabeça; não podíamos
acreditar. Mas me refazendo do impacto, falei com convicção:
- Não, não, doutor. Seria apenas para prolongar a vida da
bichinha por alguns meses, não é mesmo?
- Sim, mas muitas vezes o paciente apresenta uma boa resposta ao
tratamento. Faz-se o possível, e no mínimo conseguimos que vivam mais um
pouco, e com menos sofrimento.
- Não. A Leidinha já tem muita idade, é muito frágil e não vai
suportar. Isso só iria prolongar inutilmente o seu sofrimento, e ela já
sofreu muito antes, o senhor sabe. Nós a amamos e queremos evitar que ela
sofra mais, por isso decidimos que tudo termine agora, enquanto ela ainda não
está sentindo muitas dores e ainda consegue respirar e se alimentar.
Ela permanecia deitadinha sobre a mesa fria de alumínio, na sala de
atendimento médico. Com a cabecinha apoiada na minha mão, bem quietinha,
parecia estar entendendo resignada aquela nossa conversa, em que a sua
família acabava de decidir e autorizar o médico a por fim ao seu sofrimento e
à sua vida. Olhava para a sala com um olharzinho perdido como se estivesse
longe, bem distante dali. Quem sabe ela estaria vendo passar diante dos seus
olhinhos uma retrospectiva da sua vida, que já estava se aproximando do
fim. De repente fechou os olhos, como se tivesse adormecido.
- Se a senhora está mesmo decidida...
E percebendo a nossa tristeza, disse: ela não sofrerá coisa alguma,
não sentirá dores nem entrará em agonia. Morrerá dormindo. Mandarei fazer uma
medicação letal que será colocada no soro, numa dosagem superior ao que ela
pode suportar. Será tudo rápido. Ela adormecerá profundamente e não acordará
mais.
Um funcionário a levou para o andar de cima e não a vimos mais. Sem
despedidas. Foi melhor assim.
----------
Já era noite quando nós saímos silenciosamente da clínica, tristes,
com os corações pesados e até mesmo com um certo sentimento de culpa.
Sabíamos que estávamos sendo responsáveis pela morte daquele animalzinho
querido, que nos deu tantas alegrias convivendo conosco por tantos anos,
desde aquela tarde longínqua em que eu a encontrei abandonada naquela garagem
de barcos.
Entramos no carro sem trocar nenhuma palavra. Quando chegamos em casa
parecia que tínhamos deixado um pedaço de cada uma de nós naquele hospital.
Ficou tudo tão triste sem ela, um vazio tão grande embaixo da mesinha na
cozinha, onde ela viveu seus últimos dias deitada sobre aquela toalha
listrada...
Mas como no circo, o espetáculo da vida também continua. E ficaram os
outros três para alegrarem a nossa casa: Seu Xandico - o siamês, já com
dezoito anos, o Bill e o Pelucinho, que também teriam as suas histórias de
vida pra contarmos depois, e a cada partida uma saudade.
Autora: Junia - 2012
BIL CATS

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O NOME DELE ERA "SEU" XANDICO
Seu Xandico
22 de outubro de 2007. Lá está ele dormindo na nossa cama com a
maior intimidade, como um filhinho que de vez em quando adormece na cama
dos pais. E é assim que ele se sente mesmo, como um filhinho nosso. E
tenho certeza de que se eu pudesse ler os seus pensamentos, poderia mesmo
confirmar que essa é uma grande verdade para ele, que nesses vinte e dois
anos de convivência aprendeu a nos amar como nós o amamos também e a
depender completamente de nós. É um amigo sincero, que sente a nossa
falta quando demoramos a voltar pra casa e enquanto não chegamos ele não
pára de andar de um lado pra outro, cheio de ansiedade, principalmente em
relação ao seu dono, a quem se apegou como se realmente fosse o pai
dele.
Agora a sua idade equivale, em idade humana, a mais de noventa
anos. Magrinho, fraco e com o pelinho ralo e desbotado, com seus olhinhos
vesgos, antes de um lindo azul brilhante e agora embotados pelo tempo e
pela catarata que o impede de enxergar bem, costuma perambular a esmo
pela casa com um andarzinho banzeiro, trambecando das perninhas magras,
com um olhar perdido como se não estivesse reconhecendo os lugares onde
sempre viveu. Às vezes põe-se a miar alto e grosso até mesmo durante a
noite, como se estivesse a procura de alguma coisa que ninguém pode saber
o que é, e talvez nem ele mesmo saiba o quê. Então ele vai até o seu
pratinho no chão, come um pouco, depois procura um dos seus lugares
preferidos e volta a adormecer. E sonha. Os movimentos repentinos de suas
frágeis patinhas denotam que sua mente está revivendo, quem sabe,
momentos de seu passado distante, quando elas realmente faziam jus a
reconhecida agilidade dos gatos, quando pulavam janelas e muros, subiam
correndo as escadarias do prédio e foram capazes de incontáveis
peripécias e fugas espetaculares, se escondendo em apartamentos vizinhos
ou desaparecendo sobre o teto da garagem do prédio numa noite de
chuva.
Pertence a raça siamesa, e no vigor da sua juventude as cores
marrons claro e escuro da sua pelagem eram de fazer inveja a qualquer
outro bichano que aparecesse nos corredores do edifício Simon Bolívar,
onde ele veio residir no apartamento 304, precisamente no dia doze de
outubro de 1986, com dois meses de idade, oferecido como presente no Dia
da Criança à nossa filha Tatiana.
A sua história é bastante longa e recheada de episódios pitorescos
durante esses longos anos, que até dariam um livro. Tem de tudo,
começando pelo dia em que já bastante forte e bom de briga ele atracou-se
com outro bichano do condomínio e o seu “pai”, que naquele tempo ainda
não era assim considerado, e que também não ia nem um pouco com o focinho
dele, tentando apartar a briga levou tremendas mordidas no braço esquerdo
e na mão. A raiva foi tamanha que ele tentou, embora inutilmente, dar-lhe
uma boa surra. Foi um verdadeiro pandemônio na cozinha de manhã cedo, com
gente chorando e tudo, implorando pra que ele não castigasse o gato. Deu
barraco mesmo. Mas o bichinho era tão danado que ao ver as coisas ficarem
pretas pro seu lado, lançou mão dos recursos que a natureza lhe conferiu
e, agindo rápido como um gato que se preza se escondeu embaixo da
geladeira, que empurrada pra lá e empurrada pra cá pra puxa-lo debaixo
pelo rabo, veio parar no meio da cozinha, mas ninguém conseguiu tira-lo de
lá. E graças a habilidade do resto da família, o dono do gato foi
acalmado e levado para sala, onde recebeu os cuidados necessários. E pelo
resto do dia pouco se viu mais o felino, que ressabiado tratou de se
esconder muito bem.
E agora, quem vai poder explicar o porque da transformação que se
seguiu? Não há quem saiba. Daí por diante, apesar dos pesares, os dois, o
dono e o gato, se tornaram amigos, ou melhor, até pareciam pai e filho.
De tal forma que quilos e mais quilos de sardinha fresca passaram a
entulhar o congelador da geladeira e logo depois, caixas e mais caixas de
latinhas de Wiskas de sabores variados ao gosto do freguês passaram a ser
empilhadas nos armários e soleiras das janelas da área de serviço, e o
gato gordo e luzidio até passou a ter ficha completa com endereço fixo,
número de telefone e tudo em clínica veterinária da zona sul do Rio de
Janeiro. Tudo pago pelo dono. E passou também a ser elogiado por sua
valentia e macheza, apesar de seu proprietário ter mandado castra-lo, por
motivos de conveniência ou, quem sabe, para evitar inconveniências. No
entanto, desconfio que até hoje o pobre animalzinho tem essa mágoa
atravessada na goela, mas conformou-se: fazer o quê? O que foi feito,
feito foi.... Entretanto ainda andou circulando pelos corredores do
prédio um boato de que um siamêsinho bastardo que nasceu na garagem e que
a mãe abandonou, só poderia ser filho dele, já que por ali não havia
outro gato daquela raça a não ser o do apartamento 304, afirmava
categoricamente um porteiro que encontrou o recém nascido. Nesse caso, se
o porteiro tiver razão, o dito cujo gato era tão macho mesmo que ainda
foi pai, mesmo depois de castrado.
Não tinha medo de estranhos e nunca se escondeu embaixo de cama
com medo de foguetão. Tirava de letra a gritaria e os estouros dos fogos
na rua durante os jogos da Copa do Mundo, olhando para a janela como se
estivesse entendendo alguma coisa. Entendendo ou não do assunto, o fato é
que sempre assistiu na sala, no meio da galera animada, os jogos de cinco
Copas, recorde batido por muito poucos espécimes da família dos felídeos.
Até nas noites de 31 de dezembro, enquanto à meia noite os outros gatos
se enfiavam dentro dos armários, apavorados com os estouros das bombas,
ele permanecia tranquilo, apenas olhando para a janela da rua, como
sempre aconteceu durante as vinte e duas noites de ano novo que viveu e
até mesmo comemorou, saboreando suculentos pedaços de peru ou chester que
lhe eram oferecidos.
Agora ele não viverá mais por muito tempo entre
nós. E não seria justo que depois de tantos anos enchendo de alegria a
nossa casa, mesmo tendo sido responsável por quebra de abajur, relógios e
ventiladores, por ter derrubado árvore de natal e se embrenhado entre as
lâmpadas acesas, quase causado um curto circuito, tendo ficado
dependurado no secador de roupas quando tentava fugir, mesmo tendo a
audácia de saltar pela janela e caído em cima da cabeça do coronel, nosso
vizinho que estava dormindo no sofá da sala e acordou apavorado, por tudo
isso e muito mais, não seria justo ele não receber uma homenagem das
pessoas a quem ele tanto trouxe momentos de alegria.
Depois que ele
partir, com certeza a casa nunca mais será a mesma. Nela estará sempre
faltando o velho gatinho que quase só tinha o coro e os ossos, mas era
tão danado que sempre tentava subir nos móveis e às vezes escorregava,
por falta de força nas perninhas trôpegas. Serão muitas as lembranças e a
saudade que ele vai deixar em nossos corações, quando de sua passagem por
este mundo. Por isso esta crônica está sendo escrita agora, pois ele é
muitíssimo sensível e inteligente para entender a nossa linguagem. Nós
sabemos que ele compreende o que estamos dizendo. Não importa o que os
outros pensem de nós, o que digam e o que falem... Ele está ali na minha
frente e sabe que estou escrevendo sobre ele, e ele merece esta
homenagem.
Dois meses depois...
Sua última noite de reveillon ele passou deitadinho na nossa
cama, como sempre estava vivendo. Sem mais nenhum entusiasmo, de vez em
quando levantava a cabecinha e olhava esmo para a janela da rua, de onde
vinha o som dos estouros dos fogos, que ele ouviu pela última vez. Em
seguida, mergulhou em seu profundo sono.
Era o quinto dia do ano de 2008
e ele quase não conseguia mais se alimentar nem beber água. A fraqueza o
dominava e o seu estado nos causava muita tristeza. A veterinária fora
realista diante do quadro de seu paciente que, devido a idade muito
avançada, por ele nada mais poderia ser feito.
Decidimos então autorizar
a médica a sacrificá-lo, já que anestesiado ele deixaria a vida sem
nenhum sofrimento. Com muito pesar levei-o à clínica em meus braços,
enroladinho numa toalha macia como se ele fosse um bebê, a fim de que
tudo terminasse logo. Mas ao vê-lo estirar um bracinho para fora da
toalha e passar a patinha no meu queixo, olhando-me com aqueles olhinhos
embotados e tristes, como se estivesse me pedindo para não fazer isso...
ah, Deus! Eu não tive coragem de entrega-lo ao sacrifício. Trouxe-o de
volta para a sua casa que ele tanto amava e onde sempre viveu, para que
dela ele partisse em paz sabe-se lá para onde na eternidade, ou mesmo
para lugar nenhum.
Ele sempre foi surpreendente, e não deixou de ser
diferente ao chegar em casa naquela tarde, pois para espanto de todos,
comeu fígado cru picadinho e bebeu água durante mais dois dias e dormiu
bastante! A partir daí a sua longa vida entrou em contagem regressiva,
com as forças diminuindo a cada hora como a luz de uma vela, até o fim,
quando envolto em sua toalhinha felpuda e colocado sobre o sofá da sala,
às vinte horas e quinze minutos do dia 08 de janeiro, confortado pelo
carinho da família à sua volta, enfim o seu forte coraçãozinho de vinte e
dois anos parou. Sem fazer nenhum gesto ele partiu para sempre, deixando
entre nós um grande vazio e a história de um siamêsinho tão querido, que
por nós será sempre lembrado com imensa saudade.
Júnia – 19 de
janeiro/2008
********
PELUCINHO - ETERNA SAUDADE...
Lembro-me muito bem de quando o vi pela primeira vez, deslizando
pelo corredor de tábua corrida no apartamento onde morava com os “pais”,
correndo e escorregando na superfície lisa com aquelas perninhas grossas
e curtas, rabinho peludo e levantado que mais parecia um espanadorzinho
de penas. Com aqueles olhinhos matreiros de cor avermelhada, olhava-me de
longe com uma certa reserva - uma intrusa desconhecida que sem querer
havia pisado levemente em uma de suas lindas patinhas. Apesar de eu ter
tentado lhe fazer um carinho e lhe pedir desculpas, ele não me deu muita
confiança e manteve-se à distância olhando-me desconfiado, deixando-me
com um tremendo sentimento de culpa e de paixão.
Era muito lindo, o bichano mais lindo e fofo que eu já conheci.
De cor bege, pelo farto e macio, era grande, gracioso, sociável e
divertido. Costumava entrar no lugar reservado para um aparelho de ar
condicionado que ainda não fora instalado na sala de visitas, e como o
apartamento ficava no primeiro andar do prédio, não havia quem passasse
pela calçada que não parasse para admirar a graça, a beleza e o charme
que ele esbanjava, sentado, apreciando tranquilamente o movimento da rua,
indiferente aos elogios que lhe faziam, principalmente as crianças.
Eu não podia imaginar que um dia ele viesse para a nossa casa,
integrar-se à nossa vida e se enraizar tão profundamente em meu coração.
Cheguei a criar uma débil fantasia imaginando que ele me chamava de vovó.
É que eu sempre gostei de gatinhos e de conversar com eles, fingindo que
eles também conversavam comigo, e inventava uma falinha com sotaque
especial, como se fosse deles.
Seu nome era Jimmy, mas como ele mais parecia um daqueles
bichinhos macios de pelúcia que se compra nas lojas, passei a chama-lo de
Pelúcio, apesar dos protestos de seu antigo dono, que dizia haver lhe
dado um nome mais sofisticado e charmoso, próprio para um exemplar da
raça persa.
Pelúcio tinha hábitos muito cativantes, que logo conquistaram a
sua nova família, como o de enfiar as patinhas entre os cabelos da gente,
encostar a cabecinha na nossa cabeça e ficar ronronando de felicidade.
Pedia comidinha ficando de pé, subindo nas pernas de quem estava na
cozinha, ficava todo arrepiadinho e dava umas voltinhas em círculo.
Cismou de tomar para ele a minha cadeira de leitura, reclinável, e quando
me via caminhar em direção a ela, rapidamente corria na frente, subia na
cadeira, se sentava e ficava me olhando com ar triunfante, bem certo de
ser o real proprietário daquele território..
No verão mandávamos tosar
o seu pelo por causa do calor. Ele ficava tão curtinho e engraçado que
até parecia um cachorrinho, que eu adorava, e lhe dava tantos beijinhos
que ele muito atordoado e sufocado, até me arranhava e me dava uns tapas!
Tão lin dinho...
De repente adoeceu. Ficou estranho, com o semblante
visivelmente abatido, olhinhos pra baixo e com o pescocinho mole. Não
conseguia ficar de pé. Depois de ser examinado, radiografado e medicado,
aparentemente voltou ao normal, mas estava condenado. A sua coluna estava
lesionada. Talvez em suas estripolias de gatinho danado, tivesse caído de
mau jeito ao pular de algum móvel e machucado fortemente uma vértebra,
que prendendo um nervo impedia a circulação da medula, e não foi
aconselhável opera-lo. Depois de alguns dias o problema se repetiu, ele
foi medicado novamente, mas na terceira crise não resistiu.
Só quem também ama de verdade pode entender a dor que se acumula
no coração de quem vê o seu ente querido sofrendo e não pode fazer mais
nada para alivia-lo. Ver os seus olhinhos nos olhando com um ar de quem
está lhe perguntando - por que? – faz a gente sentir uma comoção tão
grande que temos a impressão de que o nosso coração está se partindo, e
somente as lágrimas expressam a dor que estamos sentindo, e que já se
chama saudade.
Para consolo nos restam as fotos de momentos felizes que vivemos
juntos, seu pratinho de ração, sua cumbuquinha de água e tudo mais que
ele usava. E a minha cadeira, que será sempre dele.
VOVÓ – 16/AGOSTO/2009
******
LADY MARINA - A LEIDINHA
(COLOCAR UMA FOTO DELA)
Uma tarde enquanto eu caminhava pelo parque do Flamengo no
Rio de Janeiro, avistei dentro de uma garagem de barcos na marina da
Gloria, uma gatinha branca muito frágil, que entre outros animais maiores
também disputava uma porção de comida no chão. Só que na disputa pela
comida, os outros gatos, fortes e sabidos a empurravam e lhe batiam, e um
bichano muito grande atirou-se sobre ela. Travou-se uma briga terrível e
a pobrezinha apanhava muito. Assustada ela correu e se escondeu embaixo
de um barco velho.
Muito penalizada eu voltei à minha casa, coloquei um pouco de
ração num vidro, peguei um travesseiro surrado, coloquei tudo num
carrinho de feira e voltei ao parque, mas não encontrei mais a gatinha.
Intencionalmente coloquei um pouco de ração no chão, na esperança de que
ela aparecesse, e toda a gataria se aproximou para comer. De repente,
muito timidamente apareceu também a gatinha branca, que mais uma vez não
teve nenhuma chance. Então eu coloquei um pouco de ração na minha mão,
estirei o braço e comecei a chama-la carinhosamente mostrando-lhe a
comidinha. Era muito tímida e ao mesmo tempo agressiva, como se
automaticamente vivesse tentando se defender, mas se aproximou, estirou o
pescocinho e começou a devorar os grãozinhos que estavam na minha mão.
Era muito magrinha, quase só tinha pelo e ossos, estava faminta e muito machucada.
Tinha uma linda pelagem, com apenas uma manchinha cinza nas costas.
Percebi que ela tinha um olhinho verde e outro azul, e como era graciosa!
Enquanto comia eu a segurei com firmeza, puxei-a para o lado de
fora da cerca de arame e a coloquei dentro do carrinho sobre o
travesseiro macio, aonde já havia um punhado de ração espalhado, para ela
comer. Não pesava quase nada, era leve como uma pena. Fechei fortemente a
tampa do carrinho e rapidamente fomos embora para a nossa casa.
A princípio, mesmo assustada ela continuou a se alimentar. Depois,
sentindo-se segura dentro do carrinho, deitou-se sobre a almofada, virou
a cabecinha para um lado e começou a cochilar. Estava muito cansada e
ofegante, mas mesmo assim, de vez em quando se erguia e olhava para um
lado e para o outro como se estivesse vendo aqueles lugares pela primeira
vez. Certamente fora levada por alguém e abandonada dentro daquele
cercado cheio de gatos estranhos, que também tiveram o mesmo destino, mas
que a maltratavam muito. Resolvi em meu coração que de agora em diante eu
lhe daria um novo destino, e ela teria proteção, abrigo seguro,
alimentação, carinho, família, e mais: um nome!
Anoitecia quando chegamos no novo lar de Lady Marina da Gloria,
Leidinha, como seria chamada, aonde ela foi bem recebida e aceita, apesar
do olhar meio desconfiado de Seu Xandico, o nosso gato siamês, que apesar
da covardia que lhe fizeram, mesmo capado mostrou que era um macho de boa
cepa, e não parava de rodear e dar cheirinhos na linda namorada, de
quem sempre teve muitas crises de ciúmes, embora nunca tenha podido
assumir pra valer as suas obrigações de marido.
-------------
Não era uma vira-latas, mas um felino SDR, ou seja, sem definição
de raça, era uma mistura, falou o veterinário, e a causa do seu raquitismo
era a fome, o maltrato e o estresse em que ela vivia. Não era tão novinha
como eu pensava; já era adulta, mas era pequena e curtinha.
Tinha varias feridas pelo corpo, causadas pelas unhas e mordidas dos
gatos que a atacavam, tinha bactérias nas patinhas e orelhas, e entre
outras mazelas um fungo no nariz. E aquele seu olhinho tinha a cor azul
porque era vazado e cego.
- Pobrezinha, falei morrendo de pena. Ela ainda tem jeito, doutor?
Perguntei.
- Sim, claro, ela só precisa de cuidados, boa alimentação e
tratamento. E muito amor! Ela nunca teve nada disso...
E a Leidinha ficou internada por três dias, se alimentando bem,
tomando soro e remédio. Quando fui busca-la fiquei surpresa: apesar da
magreza estava linda! Tinha tomado banho, seu pelo estava tão branquinho
e escovado que dava gosto se ver, e estava toda perfumada e
esperta. Parecia mais uma coelhinha.
Em mais ou menos cinco meses engordou tanto que a barriguinha
quase encostava no chão, porque as patinhas eram curtas. Tinha um
andarzinho requebrado e faceiro e gostava de pular e correr, por isso
mesmo fez valer o carinhoso apelido de coelha, e com todo aquele
sex-appeal, logo tivemos que providenciar a sua castração para evitar maiores
problemas, pois estava ficando muito assanhada.
Quis o destino que um outro gatinho viesse para a nossa casa, o
Bill. Esse era bem nascido, tinha dois meses e logo cresceu muito, para
desespero daquele que já se julgava marido da linda gatona branca. Só que
pra nenhum dos dois ela dava a mínima, não queria era nada, pois já
estava de coração fechado para o amor desde aquela operação que lhe
fizeram na clínica. E lá eu tive que levar o outro gato macho pra castrar
também, só assim a gente teria sossego em casa, ainda mais por causa dos
ciúmes do siamês, que era bom de briga, e nas suas crises passava o
dia rosnando, ameaçando sair no tapa.
Brancas nuvens por muito tempo, família tranqüila, mas lá vem o
destino outra vez com uma das suas. E chegou o Pelucinho, um bichano
persa lindão de cor bege, um verdadeiro gatão, pra mais uma vez atiçar os
ciúmes do siamês. Troca de olhares e cheirinhos furtivos aconteceram de
montão com a chegada do gatão, mas pra sorte do maridão, o belo
concorrente, coitado, não era de nada. Também era eunuco!
------------
Infelizmente ninguém escapa da crueldade do destino, pois tudo que
começa tem fim. Nós tínhamos uma família de quatro lindos felinos que
conviviam em santa paz, mas começamos a perceber que a coelhinha, a
essa altura já com treze anos, apesar de seu grande apetite, estava
emagrecendo. Vivia deitada embaixo de uma mesinha na cozinha e de
vez em quando botava a língua pra fora, tossia e ficava muito cansada,
ofegante mesmo. Já não brincava nem corria junto com os seus três amigos.
------------
Na clínica, o mesmo veterinário que cuidou dela antes, foi
taxativo. Mostrando-me a radiografia, falou:
- Não tenho boas notícias não. Infelizmente é câncer no pulmão, e
em estado bem avançado, mas com medicamentos e quimioterapia...
Realmente a notícia foi muito chocante, foi como se nós duas, eu e
minha filha, tivéssemos levado uma pancada na cabeça; não podíamos
acreditar. Mas me refazendo do impacto, falei com convicção:
- Não, não, doutor. Seria apenas para prolongar a vida da
bichinha por alguns meses, não é mesmo?
- Sim, mas muitas vezes o paciente apresenta uma boa resposta ao
tratamento. Faz-se o possível, e no mínimo conseguimos que vivam mais um
pouco, e com menos sofrimento.
- Não. A Leidinha já tem muita idade, é muito frágil e não
vai suportar. Isso só iria prolongar inutilmente o seu sofrimento, e ela
já sofreu muito antes, o senhor sabe. Nós a amamos e queremos evitar que
ela sofra mais, por isso decidimos que tudo termine agora, enquanto ela
ainda não está sentindo muitas dores e ainda consegue respirar e se
alimentar.
Ela permanecia deitadinha sobre a mesa fria de alumínio, na sala
de atendimento médico. Com a cabecinha apoiada na minha mão, bem
quietinha, parecia estar entendendo resignada aquela nossa
conversa, em que a sua família acabava de decidir e autorizar o médico a
por fim ao seu sofrimento e à sua vida. Olhava para a sala com um
olharzinho perdido como se estivesse longe, bem distante dali. Quem sabe
ela estaria vendo passar diante dos seus olhinhos uma retrospectiva da
sua vida, que já estava se aproximando do fim. De repente fechou os
olhos, como se tivesse adormecido.
- Se a senhora está mesmo decidida...
E percebendo a nossa tristeza, disse: ela não sofrerá coisa
alguma, não sentirá dores nem entrará em agonia. Morrerá dormindo.
Mandarei fazer uma medicação letal que será colocada no soro, numa
dosagem superior ao que ela pode suportar. Será tudo rápido. Ela
adormecerá profundamente e não acordará mais.
Um funcionário a levou para o andar de cima e não a vimos mais.
Sem despedidas. Foi melhor assim.
----------
Já era noite quando nós saímos silenciosamente da clínica,
tristes, com os corações pesados e até mesmo com um certo sentimento de
culpa. Sabíamos que estávamos sendo responsáveis pela morte daquele
animalzinho querido, que nos deu tantas alegrias convivendo conosco por
tantos anos, desde aquela tarde longínqua em que eu a encontrei
abandonada naquela garagem de barcos.
Entramos no carro sem trocar nenhuma palavra. Quando chegamos em
casa parecia que tínhamos deixado um pedaço de cada uma de nós naquele
hospital. Ficou tudo tão triste sem ela, um vazio tão grande embaixo da
mesinha na cozinha, onde ela viveu seus últimos dias deitada sobre aquela
toalha listrada...
Mas como no circo, o espetáculo da vida também continua. E ficaram
os outros três para alegrarem a nossa casa: Seu Xandico - o siamês, já
com dezoito anos, o Bill e o Pelucinho, que também teriam as suas
histórias de vida pra contarmos depois, e a cada partida uma saudade.
Autora: Junia - 2012
BIL CATS=====================

O NOME DELE ERA "SEU" XANDICO
Seu Xandico
22 de outubro de 2007. Lá está ele dormindo na nossa cama com
a maior intimidade, como um filhinho que de vez em quando adormece na
cama dos pais. E é assim que ele se sente mesmo, como um filhinho
nosso. E tenho certeza de que se eu pudesse ler os seus pensamentos,
poderia mesmo confirmar que essa é uma grande verdade para ele, que
nesses vinte e dois anos de convivência aprendeu a nos amar como nós
o amamos também e a depender completamente de nós. É um amigo
sincero, que sente a nossa falta quando demoramos a voltar pra casa e
enquanto não chegamos ele não pára de andar de um lado pra outro,
cheio de ansiedade, principalmente em relação ao seu dono, a quem se
apegou como se realmente fosse o pai dele.
Agora a sua idade
equivale, em idade humana, a mais de noventa anos. Magrinho, fraco e
com o pelinho ralo e desbotado, com seus olhinhos vesgos, antes de um
lindo azul brilhante e agora embotados pelo tempo e pela catarata que
o impede de enxergar bem, costuma perambular a esmo pela casa com um
andarzinho banzeiro, trambecando das perninhas magras, com um olhar
perdido como se não estivesse reconhecendo os lugares onde sempre
viveu. Às vezes põe-se a miar alto e grosso até mesmo durante a
noite, como se estivesse a procura de alguma coisa que ninguém pode
saber o que é, e talvez nem ele mesmo saiba o quê. Então ele vai até
o seu pratinho no chão, come um pouco, depois procura um dos seus
lugares preferidos e volta a adormecer. E sonha. Os movimentos
repentinos de suas frágeis patinhas denotam que sua mente está
revivendo, quem sabe, momentos de seu passado distante, quando elas
realmente faziam jus a reconhecida agilidade dos gatos, quando
pulavam janelas e muros, subiam correndo as escadarias do prédio e
foram capazes de incontáveis peripécias e fugas espetaculares, se
escondendo em apartamentos vizinhos ou desaparecendo sobre o teto da
garagem do prédio numa noite de chuva.
Pertence a raça siamesa, e no vigor da sua juventude as cores
marrons claro e escuro da sua pelagem eram de fazer inveja a qualquer
outro bichano que aparecesse nos corredores do edifício Simon
Bolívar, onde ele veio residir no apartamento 304, precisamente no
dia doze de outubro de 1986, com dois meses de idade, oferecido como
presente no Dia da Criança à nossa filha Tatiana.
A sua história é bastante longa e recheada de episódios
pitorescos durante esses longos anos, que até dariam um livro. Tem de
tudo, começando pelo dia em que já bastante forte e bom de briga ele
atracou-se com outro bichano do condomínio e o seu “pai”, que naquele
tempo ainda não era assim considerado, e que também não ia nem um
pouco com o focinho dele, tentando apartar a briga levou tremendas
mordidas no braço esquerdo e na mão. A raiva foi tamanha que ele
tentou, embora inutilmente, dar-lhe uma boa surra. Foi um verdadeiro
pandemônio na cozinha de manhã cedo, com gente chorando e tudo,
implorando pra que ele não castigasse o gato. Deu barraco mesmo. Mas
o bichinho era tão danado que ao ver as coisas ficarem pretas pro seu
lado, lançou mão dos recursos que a natureza lhe conferiu e, agindo
rápido como um gato que se preza se escondeu embaixo da geladeira,
que empurrada pra lá e empurrada pra cá pra puxa-lo debaixo pelo
rabo, veio parar no meio da cozinha, mas ninguém conseguiu tira-lo de
lá. E graças a habilidade do resto da família, o dono do gato foi
acalmado e levado para sala, onde recebeu os cuidados necessários. E
pelo resto do dia pouco se viu mais o felino, que ressabiado tratou
de se esconder muito bem.
E agora, quem vai poder explicar o porque da transformação que
se seguiu? Não há quem saiba. Daí por diante, apesar dos pesares, os
dois, o dono e o gato, se tornaram amigos, ou melhor, até pareciam
pai e filho. De tal forma que quilos e mais quilos de sardinha fresca
passaram a entulhar o congelador da geladeira e logo depois, caixas e
mais caixas de latinhas de Wiskas de sabores variados ao gosto do
freguês passaram a ser empilhadas nos armários e soleiras das janelas
da área de serviço, e o gato gordo e luzidio até passou a ter ficha
completa com endereço fixo, número de telefone e tudo em clínica
veterinária da zona sul do Rio de Janeiro. Tudo pago pelo dono. E
passou também a ser elogiado por sua valentia e macheza, apesar de
seu proprietário ter mandado castra-lo, por motivos de conveniência
ou, quem sabe, para evitar inconveniências. No entanto, desconfio que
até hoje o pobre animalzinho tem essa mágoa atravessada na goela, mas
conformou-se: fazer o quê? O que foi feito, feito foi.... Entretanto
ainda andou circulando pelos corredores do prédio um boato de que um
siamêsinho bastardo que nasceu na garagem e que a mãe abandonou, só
poderia ser filho dele, já que por ali não havia outro gato daquela
raça a não ser o do apartamento 304, afirmava categoricamente um
porteiro que encontrou o recém nascido. Nesse caso, se o porteiro
tiver razão, o dito cujo gato era tão macho mesmo que ainda foi pai,
mesmo depois de castrado.
Não tinha medo de estranhos e nunca se escondeu embaixo de
cama com medo de foguetão. Tirava de letra a gritaria e os estouros
dos fogos na rua durante os jogos da Copa do Mundo, olhando para a
janela como se estivesse entendendo alguma coisa. Entendendo ou não
do assunto, o fato é que sempre assistiu na sala, no meio da galera
animada, os jogos de cinco Copas, recorde batido por muito poucos espécimes
da família dos felídeos. Até nas noites de 31 de dezembro, enquanto à
meia noite os outros gatos se enfiavam dentro dos armários,
apavorados com os estouros das bombas, ele permanecia tranquilo,
apenas olhando para a janela da rua, como sempre aconteceu durante as
vinte e duas noites de ano novo que viveu e até mesmo comemorou,
saboreando suculentos pedaços de peru ou chester que lhe eram
oferecidos.
Agora ele não viverá mais por muito tempo entre nós. E
não seria justo que depois de tantos anos enchendo de alegria a nossa
casa, mesmo tendo sido responsável por quebra de abajur, relógios e
ventiladores, por ter derrubado árvore de natal e se embrenhado entre
as lâmpadas acesas, quase causado um curto circuito, tendo ficado
dependurado no secador de roupas quando tentava fugir, mesmo tendo a
audácia de saltar pela janela e caído em cima da cabeça do coronel,
nosso vizinho que estava dormindo no sofá da sala e acordou
apavorado, por tudo isso e muito mais, não seria justo ele não
receber uma homenagem das pessoas a quem ele tanto trouxe momentos de
alegria.
Depois que ele partir, com certeza a casa nunca mais será a
mesma. Nela estará sempre faltando o velho gatinho que quase só tinha
o coro e os ossos, mas era tão danado que sempre tentava subir nos
móveis e às vezes escorregava, por falta de força nas perninhas
trôpegas. Serão muitas as lembranças e a saudade que ele vai deixar
em nossos corações, quando de sua passagem por este mundo. Por isso
esta crônica está sendo escrita agora, pois ele é muitíssimo sensível
e inteligente para entender a nossa linguagem. Nós sabemos que ele
compreende o que estamos dizendo. Não importa o que os outros pensem
de nós, o que digam e o que falem... Ele está ali na minha frente e
sabe que estou escrevendo sobre ele, e ele merece esta homenagem.
Dois meses depois...
Sua última noite de reveillon ele passou deitadinho na nossa
cama, como sempre estava vivendo. Sem mais nenhum entusiasmo, de vez
em quando levantava a cabecinha e olhava esmo para a janela da rua,
de onde vinha o som dos estouros dos fogos, que ele ouviu pela última
vez. Em seguida, mergulhou em seu profundo sono.
Era o quinto dia do
ano de 2008 e ele quase não conseguia mais se alimentar nem beber
água. A fraqueza o dominava e o seu estado nos causava muita
tristeza. A veterinária fora realista diante do quadro de seu
paciente que, devido a idade muito avançada, por ele nada mais
poderia ser feito.
Decidimos então autorizar a médica a sacrificá-lo, já que
anestesiado ele deixaria a vida sem nenhum sofrimento. Com muito
pesar levei-o à clínica em meus braços, enroladinho numa toalha macia
como se ele fosse um bebê, a fim de que tudo terminasse logo. Mas ao
vê-lo estirar um bracinho para fora da toalha e passar a patinha no
meu queixo, olhando-me com aqueles olhinhos embotados e tristes, como
se estivesse me pedindo para não fazer isso... ah, Deus! Eu não tive
coragem de entrega-lo ao sacrifício. Trouxe-o de volta para a sua
casa que ele tanto amava e onde sempre viveu, para que dela ele
partisse em paz sabe-se lá para onde na eternidade, ou mesmo para
lugar nenhum.
Ele sempre foi surpreendente, e não deixou de ser
diferente ao chegar em casa naquela tarde, pois para espanto de
todos, comeu fígado cru picadinho e bebeu água durante mais dois dias
e dormiu bastante! A partir daí a sua longa vida entrou em contagem
regressiva, com as forças diminuindo a cada hora como a luz de uma
vela, até o fim, quando envolto em sua toalhinha felpuda e colocado
sobre o sofá da sala, às vinte horas e quinze minutos do dia 08 de janeiro,
confortado pelo carinho da família à sua volta, enfim o seu forte
coraçãozinho de vinte e dois anos parou. Sem fazer nenhum gesto ele
partiu para sempre, deixando entre nós um grande vazio e a história
de um siamêsinho tão querido, que por nós será sempre lembrado com
imensa saudade.
Júnia – 19 de janeiro/2008
********
PELUCINHO - ETERNA SAUDADE...
Lembro-me muito bem de quando o vi pela primeira vez,
deslizando pelo corredor de tábua corrida no apartamento onde morava
com os “pais”, correndo e escorregando na superfície lisa com aquelas
perninhas grossas e curtas, rabinho peludo e levantado que mais
parecia um espanadorzinho de penas. Com aqueles olhinhos matreiros de
cor avermelhada, olhava-me de longe com uma certa reserva - uma
intrusa desconhecida que sem querer havia pisado levemente em uma de
suas lindas patinhas. Apesar de eu ter tentado lhe fazer um carinho e
lhe pedir desculpas, ele não me deu muita confiança e manteve-se à
distância olhando-me desconfiado, deixando-me com um tremendo
sentimento de culpa e de paixão.
Era muito lindo, o bichano mais lindo e fofo que eu já
conheci. De cor bege, pelo farto e macio, era grande, gracioso,
sociável e divertido. Costumava entrar no lugar reservado para um
aparelho de ar condicionado que ainda não fora instalado na sala de
visitas, e como o apartamento ficava no primeiro andar do prédio, não
havia quem passasse pela calçada que não parasse para admirar a
graça, a beleza e o charme que ele esbanjava, sentado, apreciando
tranquilamente o movimento da rua, indiferente aos elogios que lhe
faziam, principalmente as crianças.
Eu não podia imaginar que um dia ele viesse para a nossa casa,
integrar-se à nossa vida e se enraizar tão profundamente em meu
coração. Cheguei a criar uma débil fantasia imaginando que ele me
chamava de vovó. É que eu sempre gostei de gatinhos e de conversar
com eles, fingindo que eles também conversavam comigo, e inventava
uma falinha com sotaque especial, como se fosse deles.
Seu nome era Jimmy, mas como ele mais parecia um daqueles
bichinhos macios de pelúcia que se compra nas lojas, passei a
chama-lo de Pelúcio, apesar dos protestos de seu antigo dono, que
dizia haver lhe dado um nome mais sofisticado e charmoso, próprio
para um exemplar da raça persa.
Pelúcio tinha hábitos muito cativantes, que logo conquistaram
a sua nova família, como o de enfiar as patinhas entre os cabelos da
gente, encostar a cabecinha na nossa cabeça e ficar ronronando de
felicidade. Pedia comidinha ficando de pé, subindo nas pernas de quem
estava na cozinha, ficava todo arrepiadinho e dava umas voltinhas em
círculo. Cismou de tomar para ele a minha cadeira de leitura,
reclinável, e quando me via caminhar em direção a ela, rapidamente
corria na frente, subia na cadeira, se sentava e ficava me olhando
com ar triunfante, bem certo de ser o real proprietário daquele
território..
No verão mandávamos tosar o seu pelo por causa do calor. Ele
ficava tão curtinho e engraçado que até parecia um cachorrinho, que
eu adorava, e lhe dava tantos beijinhos que ele muito atordoado e
sufocado, até me arranhava e me dava uns tapas! Tão lin dinho...
De repente adoeceu. Ficou estranho, com o semblante
visivelmente abatido, olhinhos pra baixo e com o pescocinho mole. Não
conseguia ficar de pé. Depois de ser examinado, radiografado e
medicado, aparentemente voltou ao normal, mas estava condenado. A sua
coluna estava lesionada. Talvez em suas estripolias de gatinho
danado, tivesse caído de mau jeito ao pular de algum móvel e
machucado fortemente uma vértebra, que prendendo um nervo impedia a
circulação da medula, e não foi aconselhável opera-lo. Depois de
alguns dias o problema se repetiu, ele foi medicado novamente, mas na
terceira crise não resistiu.
Só quem também ama de verdade pode entender a dor que se
acumula no coração de quem vê o seu ente querido sofrendo e não pode
fazer mais nada para alivia-lo. Ver os seus olhinhos nos olhando com
um ar de quem está lhe perguntando - por que? – faz a gente sentir
uma comoção tão grande que temos a impressão de que o nosso coração
está se partindo, e somente as lágrimas expressam a dor que estamos
sentindo, e que já se chama saudade.
Para consolo nos restam as fotos de momentos felizes que
vivemos juntos, seu pratinho de ração, sua cumbuquinha de água e tudo
mais que ele usava. E a minha cadeira, que será sempre dele.
VOVÓ – 16/AGOSTO/2009
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LADY MARINA - A LEIDINHA
(COLOCAR UMA FOTO DELA)
Uma tarde enquanto eu caminhava pelo parque do Flamengo
no Rio de Janeiro, avistei dentro de uma garagem de barcos na marina
da Gloria, uma gatinha branca muito frágil, que entre outros animais
maiores também disputava uma porção de comida no chão. Só que na
disputa pela comida, os outros gatos, fortes e sabidos a empurravam e
lhe batiam, e um bichano muito grande atirou-se sobre ela. Travou-se
uma briga terrível e a pobrezinha apanhava muito. Assustada ela
correu e se escondeu embaixo de um barco velho.
Muito penalizada eu voltei à minha casa, coloquei um pouco de
ração num vidro, peguei um travesseiro surrado, coloquei tudo num
carrinho de feira e voltei ao parque, mas não encontrei mais a
gatinha. Intencionalmente coloquei um pouco de ração no chão, na
esperança de que ela aparecesse, e toda a gataria se aproximou para
comer. De repente, muito timidamente apareceu também a gatinha
branca, que mais uma vez não teve nenhuma chance. Então eu coloquei
um pouco de ração na minha mão, estirei o braço e comecei a chama-la
carinhosamente mostrando-lhe a comidinha. Era muito tímida e ao mesmo
tempo agressiva, como se automaticamente vivesse tentando se
defender, mas se aproximou, estirou o pescocinho e começou a devorar
os grãozinhos que estavam na minha mão. Era muito magrinha, quase só
tinha pelo e ossos, estava faminta e muito machucada. Tinha uma linda
pelagem, com apenas uma manchinha cinza nas costas. Percebi que ela
tinha um olhinho verde e outro azul, e como era graciosa!
Enquanto comia eu a segurei com firmeza, puxei-a para o lado
de fora da cerca de arame e a coloquei dentro do carrinho sobre o
travesseiro macio, aonde já havia um punhado de ração espalhado, para
ela comer. Não pesava quase nada, era leve como uma pena. Fechei
fortemente a tampa do carrinho e rapidamente fomos embora para a
nossa casa.
A princípio, mesmo assustada ela continuou a se alimentar.
Depois, sentindo-se segura dentro do carrinho, deitou-se sobre a
almofada, virou a cabecinha para um lado e começou a cochilar. Estava
muito cansada e ofegante, mas mesmo assim, de vez em quando se erguia
e olhava para um lado e para o outro como se estivesse vendo aqueles
lugares pela primeira vez. Certamente fora levada por alguém e
abandonada dentro daquele cercado cheio de gatos estranhos, que
também tiveram o mesmo destino, mas que a maltratavam muito. Resolvi
em meu coração que de agora em diante eu lhe daria um novo destino, e
ela teria proteção, abrigo seguro, alimentação, carinho, família, e
mais: um nome!
Anoitecia quando chegamos no novo lar de Lady Marina da
Gloria, Leidinha, como seria chamada, aonde ela foi bem recebida e
aceita, apesar do olhar meio desconfiado de Seu Xandico, o nosso gato
siamês, que apesar da covardia que lhe fizeram, mesmo capado mostrou
que era um macho de boa cepa, e não parava de rodear e dar cheirinhos
na linda namorada, de quem sempre teve muitas crises de ciúmes,
embora nunca tenha podido assumir pra valer as suas obrigações de
marido.
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Não era uma vira-latas, mas um felino SDR, ou seja, sem
definição de raça, era uma mistura, falou o veterinário, e a causa do
seu raquitismo era a fome, o maltrato e o estresse em que ela vivia.
Não era tão novinha como eu pensava; já era adulta, mas
era pequena e curtinha. Tinha varias feridas pelo corpo, causadas
pelas unhas e mordidas dos gatos que a atacavam, tinha bactérias nas
patinhas e orelhas, e entre outras mazelas um fungo no nariz. E
aquele seu olhinho tinha a cor azul porque era vazado e cego.
- Pobrezinha, falei morrendo de pena. Ela ainda tem jeito,
doutor? Perguntei.
- Sim, claro, ela só precisa de cuidados, boa alimentação e
tratamento. E muito amor! Ela nunca teve nada disso...
E a Leidinha ficou internada por três dias, se alimentando
bem, tomando soro e remédio. Quando fui busca-la fiquei surpresa:
apesar da magreza estava linda! Tinha tomado banho, seu pelo estava
tão branquinho e escovado que dava gosto se ver, e estava toda
perfumada e esperta. Parecia mais uma coelhinha.
Em mais ou menos cinco meses engordou tanto que a barriguinha
quase encostava no chão, porque as patinhas eram curtas. Tinha um
andarzinho requebrado e faceiro e gostava de pular e correr, por isso
mesmo fez valer o carinhoso apelido de coelha, e com todo
aquele sex-appeal, logo tivemos que providenciar a sua castração para
evitar maiores problemas, pois estava ficando muito assanhada.
Quis o destino que um outro gatinho viesse para a nossa casa,
o Bill. Esse era bem nascido, tinha dois meses e logo cresceu muito,
para desespero daquele que já se julgava marido da linda gatona
branca. Só que pra nenhum dos dois ela dava a mínima, não queria era
nada, pois já estava de coração fechado para o amor desde aquela
operação que lhe fizeram na clínica. E lá eu tive que levar o outro
gato macho pra castrar também, só assim a gente teria sossego em
casa, ainda mais por causa dos ciúmes do siamês, que era bom de
briga, e nas suas crises passava o dia rosnando, ameaçando sair
no tapa.
Brancas nuvens por muito tempo, família tranqüila, mas lá vem
o destino outra vez com uma das suas. E chegou o Pelucinho, um
bichano persa lindão de cor bege, um verdadeiro gatão, pra mais uma
vez atiçar os ciúmes do siamês. Troca de olhares e cheirinhos
furtivos aconteceram de montão com a chegada do gatão, mas pra sorte
do maridão, o belo concorrente, coitado, não era de nada. Também era
eunuco!
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Infelizmente ninguém escapa da crueldade do destino, pois tudo
que começa tem fim. Nós tínhamos uma família de quatro lindos felinos
que conviviam em santa paz, mas começamos a perceber que a
coelhinha, a essa altura já com treze anos, apesar de seu grande
apetite, estava emagrecendo. Vivia deitada embaixo de uma
mesinha na cozinha e de vez em quando botava a língua pra fora,
tossia e ficava muito cansada, ofegante mesmo. Já não brincava nem
corria junto com os seus três amigos.
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Na clínica, o mesmo veterinário que cuidou dela antes, foi
taxativo. Mostrando-me a radiografia, falou:
- Não tenho boas notícias não. Infelizmente é câncer no
pulmão, e em estado bem avançado, mas com medicamentos e
quimioterapia...
Realmente a notícia foi muito chocante, foi como se nós duas,
eu e minha filha, tivéssemos levado uma pancada na cabeça; não
podíamos acreditar. Mas me refazendo do impacto, falei com convicção:
- Não, não, doutor. Seria apenas para prolongar a vida
da bichinha por alguns meses, não é mesmo?
- Sim, mas muitas vezes o paciente apresenta uma boa resposta
ao tratamento. Faz-se o possível, e no mínimo conseguimos que vivam
mais um pouco, e com menos sofrimento.
- Não. A Leidinha já tem muita idade, é muito frágil e
não vai suportar. Isso só iria prolongar inutilmente o seu
sofrimento, e ela já sofreu muito antes, o senhor sabe. Nós a amamos
e queremos evitar que ela sofra mais, por isso decidimos que tudo
termine agora, enquanto ela ainda não está sentindo muitas dores e
ainda consegue respirar e se alimentar.
Ela permanecia deitadinha sobre a mesa fria de alumínio, na
sala de atendimento médico. Com a cabecinha apoiada na minha mão, bem
quietinha, parecia estar entendendo resignada aquela nossa
conversa, em que a sua família acabava de decidir e autorizar o
médico a por fim ao seu sofrimento e à sua vida. Olhava para a sala
com um olharzinho perdido como se estivesse longe, bem distante dali.
Quem sabe ela estaria vendo passar diante dos seus olhinhos uma
retrospectiva da sua vida, que já estava se aproximando do fim.
De repente fechou os olhos, como se tivesse adormecido.
- Se a senhora está mesmo decidida...
E percebendo a nossa tristeza, disse: ela não sofrerá coisa
alguma, não sentirá dores nem entrará em agonia. Morrerá dormindo.
Mandarei fazer uma medicação letal que será colocada no soro, numa
dosagem superior ao que ela pode suportar. Será tudo rápido. Ela
adormecerá profundamente e não acordará mais.
Um funcionário a levou para o andar de cima e não a vimos
mais. Sem despedidas. Foi melhor assim.
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Já era noite quando nós saímos silenciosamente da clínica,
tristes, com os corações pesados e até mesmo com um certo sentimento
de culpa. Sabíamos que estávamos sendo responsáveis pela morte
daquele animalzinho querido, que nos deu tantas alegrias convivendo
conosco por tantos anos, desde aquela tarde longínqua em que eu a
encontrei abandonada naquela garagem de barcos.
Entramos no carro sem trocar nenhuma palavra. Quando chegamos
em casa parecia que tínhamos deixado um pedaço de cada uma de nós
naquele hospital. Ficou tudo tão triste sem ela, um vazio tão grande
embaixo da mesinha na cozinha, onde ela viveu seus últimos dias
deitada sobre aquela toalha listrada...
Mas como no circo, o espetáculo da vida também continua. E
ficaram os outros três para alegrarem a nossa casa: Seu Xandico - o
siamês, já com dezoito anos, o Bill e o Pelucinho, que também teriam
as suas histórias de vida pra contarmos depois, e a cada partida uma
saudade.
Autora: Junia - 2012
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BIL CATS
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